A Liberdade de... Amor líquido
À hora de sempre, o pedido do costume. Na mesa mais à esquerda de Saoirse, o café da esquina, sob o padrão axadrezado de um soalho protagonista das viagens de cada um, ali estava ela. As mãos envoltas no calor do chá de hibisco, hoje, de tom tão intenso quanto a sua écharpe rosa cetim. Ao lado, as torradas a arrefecer num olhar que se mantinha perdido, imerso nos segredos ambulantes que a atenção prendiam, e no instante seguinte haveriam de desaparecer.
Sobre a madeira envernizada, uma folha em branco junto das palavras cruzadas ainda por rabiscar. A mesma rotina todas as manhãs. Há quarenta e quatro anos que era assim. O bom dia em silêncio num sorriso suficiente para a cortesia e, durante horas, aquele canto era apenas seu. Voltada para a janela, alheia às conversas paralelas, aos aromas esbatidos entre a fruta fresca e os grãos de café.
Desde os seus vinte e poucos que Saoirse era paragem obrigatória. No início, a pujança pelo descobrir todos os sabores tornava cada dia um dia diferente. O medo do desgosto nunca a impedira de provar o desconhecido. Fazia parte do caminho, dos beijos envergonhados e das mãos que se abraçaram pela primeira vez. Tudo à volta era importante. Demasiado. Pelo vazio que sentia, pela insegurança de, sozinha, ser imperativa à sua felicidade.
O amanhã não fazia parte da equação. Não havia espaço para a tristeza chorar. Os desamores trocavam-se, reencontravam-se e, algures pelo meio, a verdade haveria de surgir. A sua, do que era, do que não queria. Do que podia e do que jamais seria seu. Naquelas duas décadas, ela foi de tudo. A impulsividade inimiga da espera que não pensa nem reflete. Somente vive o desejo da procura sem habitarem sinónimos de desilusão. Respirava-se e dava-se a beber sem cautela, inconsciente do mundo e dos seus avessos. Das linhas tortas que parecem retas a quem nunca conheceu vidas angulares, ela foi de tudo. Desde o amar sem arrependimento ao ir sem qualquer receio. Do querer sem medo ao iludir o mundo inteiro. Pela instabilidade que a caraterizava, pelo vai e vem de quem não se permite possuir.
Quarenta anos depois a lucidez era outra. As pálpebras já caídas num rosto com formas de desencanto, desvendavam o tudo que era agora recordação. O fim de outrora tornou-se percurso e pertencia-lhe a cada passo. Nas interrogações, nos poemas e nos atos. Antes, a hipocrisia do dizer-se livre e viver-se com amarras aos que outros impõem, hoje ela desfizera os laços do assim-assim, da aparente aceitabilidade. Trocou as vontades submissas por “o que é de mim só a mim pertence”.
A rapidez, a urgência, a ausência de pausas porque abrandar traria a morte, deu lugar à calmaria de uma revolução. Um paradoxo útil para os que chegaram a terra encharcados e hoje se sentam a ver os tantos que se afogam pela aversão à indiferença, à transparência, ao perigo do tanto-faz. De frente para o que se renova, vez após vez, ela sabe que não há vidro que a separe de nenhum verbo. Em qualquer lugar do mundo, sabe que é sorte. Tudo o que disse, o que pôde fazer. O que andou, palmilhou, o que o amor a fez ver nascer.
Mas então, a única questão surgiu naquele raro momento de sossego quando a porta principal chiou ao abrir e, um velho, magro, encolhido, porém charmoso, entrou de mansinho. Dirigia-se para o fundo do corredor quando o seu olhar, vagueando rapidamente pela sala, se cruzou com o dela. Olhos arregalados, os de ambos, fizeram-na pensar na familiaridade daquele semblante: - Serei unicamente a distância entre o primeiro choro e o último suspiro?
Os passos aproximavam-no da última mesa à direita sem divergir a perplexidade daquele cantinho habitual.
- E neste passeio, serei passagem ou serei desígnio? – insistia ela. Fechou os olhos, voltou o pescoço ligeiramente para trás e no seu usual aceno delicado e subtil, o velho devolveu-lhe com um sorriso engelhado: - Que bom rever-te, Liberdade.
(18 de Dezembro de 2020)
Texto da autoria de: Amor Líquido